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11/11/2012

Clarice Lispector - Perdoando Deus


Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
(Perdoando Deus. in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998 )
Pra uma análise detalhada sobre este conto de Clarice Lispector, indicamos que acesse o link: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/p/perdoando_deus_conto_clarice

24/10/2012

A Arte - Clarice Lispector

A Arte - Clarice Lispector
Na arte, a inspiração tem um toque de magia,
porque é uma coisa absoluta, inexplicável. 
Não creio que venha de fora para dentro, de forças sobrenaturais.
Suponho que emerge do mais profundo eu da pessoa,
do inconsciente individual, coletivo e cósmico.
Clarice Lispector

27/09/2012

Viver é Mágico

E a doçura é tanta que faz insuportável cócega na alma.
Viver é mágico e inteiramente inexplicável.
Clarice Lispector

15/05/2012

Simplesmente Eu, Clarice Lispector

"Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir.  Não 
sou pretensiosa.  Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma 
falando e cantando, às vezes chorando..." ( Clarice Lispector )


Para os apaixonados por Clarice Lispector e sua excepcional  obra 
literária, Beth Goulart é  - Clarice Lispector em: "Simplesmente Eu".
É mais que mostrar a essência!
Diria que neste monólogo, viajamos  entre os universos paralelos de  
Clarice. Na qual a atriz, diretora e roteirista Beth Goulart, nos faz 
mergulhar no indecifrável e apaixonante mundo Clariceano.

Envolvendo o espectador tanto na concepção biográfica, como nos quadros que compõem de forma magistral seus personagens densos e complexos.
O espetáculo premiou merecidamente  a talentosa atriz Beth Goulart com o 
Prêmio Shell de Teatro.
Beth Goulart foi eleita a melhor atriz na 22ª edição do Prêmio Shell de 
Teatro (05/04/2010).

Para quem não teve a oportunidade de assistir o espetáculo ao vivo, 
recomendo que deguste este vídeo.

Indico para todos os amantes do teatro, e da vasta e rica obra literária que 
Clarice Lispector nos deixou.

Com duração de uma hora e cinco minutos na íntegra, e deixa um  gosto de
" quero mais ".
Vale a pena conferir.
Alba Simões

21/11/2011

Aprendendo a viver


Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois os olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor por essa vida mortal a assassinava docemente aos poucos. E o que é que se faz quando se fica feliz? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda que já está começando a me doer como uma angústia e como um grande silêncio? A quem dou minha felicidade que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, ela não queria ser feliz. Por medo de entrar num terreno desconhecido. Preferia a mediocridade de uma vida que ela conhecia. Depois procurou rir para disfarçar a terrível e fatal escolha. E pensou com falso ar de brincadeira: “Ser feliz? Deus dá nozes a quem não tem dentes.” Mas não conseguiu achar graça. Estava triste, pensativa. Ia voltar para a morte diária.
Clarice Lispector do Livro Aprendendo a Viver 

14/06/2011

Das Vantagens de Ser Bobo


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." 
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia. 

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. 

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um esconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e, portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. 

Aviso: Não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?" 

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! 

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. 

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás, não se importam que saibam que eles sabem. 

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! 

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Texto de Clarice Lispector


09/08/2010

Perto do Coração Selvagem

"(...)Ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo". 

Clarice Lispector Perto do Coração Selvagem
Créditos Vídeo:ESTEEHMEU

28/07/2010

O que temos feito de nós

Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas. 
Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, 
tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida
larga e nós a tememos. 
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação
para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, 
de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo 
o grande medo maior e por isso nunca
falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez 
de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingénuos para 
não rirmos de nós mesmos e para que no 
fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" 
e assim não ficarmos
perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos 
quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura. 
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia... 
Clarice  Lispector
Créditos: Vídeo por David Duarte

09/07/2010

O ovo e a galinha Clarice Lispector


  Ovo é uma coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. — O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. — O ovo por enquanto será sempre revolucionário. — Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam o ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida...
Para ler o conto " O Ovo e a Galinha Clique aqui

01/06/2010

Água Viva Clarice Lispector

 Sonhei que te escrevia um largo majestoso e era mais verdade 
ainda do que te escrevo: era sem medo. Esqueci-me do que no 
sonho escrevi, tudo voltou para o nada, voltou para a Força do que 
Existe e que se chama às vezes Deus. 
Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom,  muito bom.
O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas. 
Hoje é sábado e é feito do mais puro ar,  apenas ar.
Falo- te como exercício profundo de mim. O que quero agora 
escrever? Quero alguma coisa tranqüila e sem modas.
Alguma coisa como a lembrança de um monumento que parece mais alto 
porque é lembrança. Mas quero de passagem ter realmente tocado 
no monumento. Vou parar porque é sábado. Continua sábado. 
Aquilo que ainda vai ser depois - é agora. Agora é o domínio 
de agora. E enquanto dura a improvisão eu nasço. 
E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar 
à uma hora da madrugada ainda em desespero -  eis que às 
três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao 
encontro de mim. Calma,  alegre,  plenitude sem fulminação.
Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar. 
O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua. 
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas.
É o que está certo. 
O que te escrevo continua e estou enfeiçada.

Último Capítulo do Livro: Água Viva de Clarice Lispector
     Produção e Narração: Alba Simões